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463 anos de São Paulo (in)acessível

“Meu Deus, eu não conheço a cidade onde moro”. Foi esse o pensamento de Cleide Severiano, paulistana de 33 anos, nascida e criada em São Paulo, diante da Avenida Paulista. Seu colega Marcelo descrevia os grafites que sua cegueira não permitia que visse.

Não é difícil encontrar pessoas com deficiência com a mesma percepção. A cidade de São Paulo pode ter vivido muita coisa em seus 463 anos, mas no quesito acessibilidade ainda tem bastante coisa para aprender.

Cleide passou a conhecer mais os ambientes urbanos depois de começar a andar sozinha. Sua família não tinha o hábito de conviver com a cidade, pois os passeios eram mais ir a casa de parentes. Mas logo no começo de suas aventuras, um momento muito ruim transformou-se praticamente em um trauma: Cleide foi com seu namorado matar a vontade de conhecer o parque mais famoso da capital – um dos cartões postais mais conhecidos – mas foi barrada. “Eu cheguei lá imaginando que ia conhecer o parque que as pessoas tanto falam, mas o segurança falou para mim ‘é impossível você andar aqui. Não tem como porque tem muita gente andando de bicicleta, de patins, e vocês vão se machucar’. Então a gente acabou indo ao Planetário, que também não tinha nada acessível. Foi muito frustrante”, conta ela com um bom-humor indignado.

Desde então, o medo é uma constante nos seus programas: “Eu tenho vontade de ir à Paulista iluminada no final de ano e à árvore do Parque do Ibirapuera, porque dizem que são muito bonitas, mas eu penso ‘o que eu vou fazer lá?’. Outro lugar que quero ir é o Zoológico. Mas quando eu penso em ir eu já me desanimo, porque quem vai diz que não tem acessibilidade”.

Por outro lado, Cacilda de Oliveira não se deixa intimidar. Nascida na Paraíba, ela mora em São Paulo desde os 18 anos. Diferente de Cleide, que nasceu cega, Cacilda perdeu a visão aos 27 anos: “no começo [de perder a visão], eu ficava em casa. Mas entrei numa deprê, mas numa deprê, que achei que ia morrer!” Fala, rindo; “o que eu sentia mais falta era do movimento, do barulho da rua”.

Agora, aos 38 anos, é difícil encontrar um lugar onde Cacilda não tenha ido. Até na Comic Com de 2016 ela foi! Não sem algumas ressalvas: “meu filho queria muito ir ao Comic Com. Foi Muito difícil achar o portão, a porta de saída… e não custa nada eles darem mais atenção, porque nós [pessoas com deficiência visual] também pagamos”.

Apesar de tantos entraves, ela continua saindo e se divertindo. Seu maior problema é com a acessibilidade atitudinal – ou seja, a acessibilidade feita pelas pessoas e seus atos. “Quando você não enxerga, parece que você é transparente. Ainda quando querem ajudar, alguns não sabem e pegam você pela bengala, te empurram, te abraçam. Além disso, eles [os atendentes] ficam com medo de falar com você”.

Uma vez, Cacilda precisava comprar refrigerantes para uma festa com os amigos. Mas ao chegar ao supermercado, a funcionária pediu para esperar. “Dá uma tristeza quando você chega e tem que esperar. Eles [os atendentes] falam ‘só um momentinho, só um momentinho, só um momentinho…’. Minha impressão é que as pessoas deixam você de lado, mas eu não desisto não!”, diz ela.

Algumas empresas oferecem capacitação para seus funcionários atenderem melhor pessoas com deficiência. Os grupos buscam fidelizar o público, pois é comum os clientes com deficiência (como qualquer outro cliente) voltarem em estabelecimentos onde foram bem-recebidos. Cacilda é uma dessas pessoas.

Se ela não desiste, Cleide encara os obstáculos com outro olhar. Ela comenta: “acho que tenho medo de conhecer a cidade de São Paulo”.

A solução em alguns momentos é sair em grupo. Cacilda diz que fez amigos (com deficiência visual) na Fundação Dorina e na Adeva para irem a parques, a restaurantes, até a loja de lingerie! Por um lado, alguns vendedores estranham, perguntam o que uma mulher com deficiência vai fazer com uma lingerie. A língua ferina de Cacilda não deixa barato: “vou fazer isso o que você está pensando e muito mais!”. Por outro lado, há vendedores bem conscientes de como auxiliar um cliente com deficiência. Garçons em restaurantes que acompanham os clientes até a mesa e descrevem os pratos do dia; vendedoras de cosméticos que falam as cores dos produtos; atendentes nas cafeterias que já trazem o cardápio em braille. De vez em quando, ao entrar em um estabelecimento, as pessoas com deficiência têm uma surpresa boa.

Existem também grupos que marcam passeios entre pessoas com deficiência que não se conhecem, tendo a única característica em comum quererem se divertir sem se sentirem deslocados nos lugares onde vão. Mas Cleide levanta uma questão: “esses grupos fazem os encontros todos no meio da semana. A gente que trabalha não tem como ir”.

Por causa da falta de inclusão, a cidade de São Paulo, para Cleide, se resume a ambientes fechados, como ela conta: “não consigo usufruir dos espaços urbanos sozinha. Então eu fico muito presa a shoppings, a cinemas, a teatros”. Afinal, nem todos têm a cara-de-pau da Cacilda.

Mesmo assim, as duas têm uma lista de lugares que querem visitar. Cleide, além da Avenida Paulista na época de Natal e do Zoológico, quer ir a parques (deseja voltar naquele em que o segurança não deixou que entrasse) e visitar o Pico do Jaraguá. Já Cacilda quer muito ir a casas de show e aos barzinhos de Pinheiros, aqueles com música ao vivo.

Viver a cidade de São Paulo exige coragem, bom-humor e paciência. Preconceito e exclusão são palavras cotidianas na vida dos paulistanos com deficiência. Mesmo assim, é cada vez mais comum encontrá-los nos ônibus, metrôs, lojas e calçadas. As pessoas podem ter a audácia de Cacilda ou o receio de Cleide, mas todas vivem a cidade todos os dias para trabalhar, estudar e se divertir.

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