Autora: Marta Gil (*)
A frase mais repetida por todos os que trabalham com a inclusão de pessoas com deficiência é: a inclusão é um processo. É o que falamos para nós mesmos e para nossos companheiros de estrada; em momentos de comemoração e também para nos animar frente a um aparente retrocesso. Essa sentença tem complementos, dos quais o mais frequente é o que compara nosso árduo trabalho ao das “formiguinhas”. Nesse caso, lembro sempre de uma observação de Rosangela Berman Bieler, jornalista e ativista do movimento das pessoas com deficiência no Brasil: “Torço para que, um dia, esse formigueiro tão grande, que construímos com tanto afinco e competência, mas sem que a sociedade o visse, exploda como um vulcão, se espalhe por uma área enorme e seja visto por todos! ”
Falar que a inclusão é um processo significa dizer que ela muda à medida que avança, encontra dificuldades e pode dar passos para trás até descobrir outros caminhos – a partir da interação com as pessoas, com os fatos e com as circunstâncias de cada tempo e momento. Significa também dizer que ela deve nascer dentro de cada um de nós, mesmo naqueles que já se consideram “inclusivos”. Sempre temos algo a aprender. Há sempre mais uma fronteira para transpor.
Se a inclusão da pessoa com deficiência é dinâmica, como ela está em 2017? Ainda é a mesma de quando surgiu, mais ou menos em meados da década de 1990?
Izabel Maior e Benilton Bezerra Jr. abordaram de forma brilhante a atual fase do modelo social da deficiência em um programa da série “Café filosófico”, exibido em 2016 pela TV Cultura. Em tom coloquial, Izabel inicia sua fala afirmando que a diversidade é intrínseca ao ser humano. A despeito desse fato, o que a história nos revela é que o convívio entre diferentes sempre foi difícil, seja na Antiguidade ou no mundo contemporâneo. Temos dificuldade em atribuir valor às diferenças, ainda que nosso mundo seja cada vez mais compartilhado. É difícil para nós “acharmos bonito o que não é espelho”, como Caetano Veloso sintetiza na famosa canção “Sampa”.
Ao não valorizar a diferença, atribuímos rótulos que muitas vezes inferiorizam pessoas, destacando apenas um de seus atributos – e geralmente de forma não elogiosa. Elas são identificadas e reduzidas a uma única característica. Assim, a exclusão é imposta por uma sociedade supostamente feita para pessoas “normais”, seja lá o que isso queira dizer…
Do olhar médico ao social
O modelo médico, vigente até meados do século XX, considerava apenas a lesão, que muitas vezes resultava em deficiência. O olhar médico se considerava único e soberano. Em contrapartida, a pessoa com deficiência era reduzida à condição de paciente. Como tal, devia exercitar a virtude da paciência, pois era vista como vítima, alvo de infortúnio ou de tragédia pessoal. Inspirava piedade e dó – seus familiares a viam como “uma cruz” a ser carregada com resignação.
A crítica a esse paradigma veio das próprias pessoas com deficiência. Elas identificaram a confusão que era feita entre a lesão (situação objetiva) e a condição de deficiência, isto é, o modo como a lesão impacta a performance das pessoas na sociedade, que é uma experiência subjetiva. Essa atuação depende da interação entre as condições oferecidas pelo ambiente (entenda-se acessibilidade, no sentido mais amplo do termo) e as de funcionalidade da pessoa e de suas particularidades. A deficiência é, portanto, relacional, como define Izabel: ela não é o aspecto biológico, mas o resultado da interação entre indivíduo e sociedade.
O modelo social da deficiência introduziu os conceitos de autonomia e de vida independente, como bandeiras de luta. Tornaram-se, também, uma filosofia e um movimento social, inicialmente na Califórnia, na esteira do movimento hippie, do rock, do Flower Power e do início da internet.
É fácil entender a força e a sedução exercidas por essas ideias: após séculos – ou mesmo milênios – sem direito de expressar desejos, emoções e opiniões, dependendo da caridade e da boa vontade da Igreja, da família ou de pessoas “de bom coração”, era chegado o momento das pessoas com deficiência soltarem o grito preso na garganta. De decidir o que fazer da própria vida – e de como fazer.
A segunda fase do modelo social da deficiência
Adentramos agora a fase 2, segundo a análise de Izabel e Benilton: os valores da colaboração, da solidariedade, da interdependência e da complementaridade se fazem mais presentes, juntamente com o conceito de apoio. Afinal, todos nós precisamos de suporte, desde o nascimento até a velhice. “Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo”, como bem sabia o poeta inglês John Donne.
Os desafios são, agora, conjugar apoio e vontade própria; somar suporte e respeito à opinião, à capacidade de decisão e ao exercício de direitos e da cidadania. Esses são os próximos passos, as próximas fronteiras da inclusão.
Bem-vinda fase 2! Que você nos torne mais humanos e solidários.
(*) Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas (www.amankay.org.br), consultora na área de Inclusão de Pessoas com Deficiência, responsável pela concepção do DISCOVERY, primeiro jogo corporativo sobre Inclusão, consultora da série “O futuro que queremos- trabalho decente e inclusão de pessoas com deficiência” (OIT e Ministério Público do Trabalho) responsável pela elaboração da Metodologia SESI SENAI de Gestão da Inclusão na Indústria, Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais.
Autora dos livros “Caminhos da Inclusão – a trajetória da formação profissional de pessoas com deficiência no SENAI-SP”, “As cores da Inclusão – SENAI MA” e organizadora do livro “Educação Inclusiva: o que o professor tem a ver com isso ?”, USP/Fundação Telefônica/Ashoka, prêmio Imprensa Social.
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